O assunto que eu resolvi postar hoje é extremamente delicado, do mesmo modo que é importante. A lavagem dos fios de conta.
Este ritual, que vem a cada ano mais e mais sendo deixado de lado nas casas de Candomblé, marca a entrada do neófito, ou candidato à iniciação, no ritmo da casa e no processo de adequação entre os iniciados e o Abiã.
Segundo Guilherme Lemos, “mais que um adorno, é uma marca e uma fonte de axé. O simples colar ao ser imerso na devida mistura de folhas quinadas, associada a alguns outros materiais, transforma-se numa identificação que remete o indivíduo ao seu lugar na comunidade. A cerimônia da lavagem das contas é, por assim dizer, a inserção do neófito no universo mítico e místico do candomblé. Ao receber seus primeiros fios-de-contas, geralmente um fio de Oxalá e outro de seu orixá pessoal, o então abiã se apercebe da importância de Oxalá no conjunto dos orixás. Oxalá é o deus do branco, o pai dos orixás, ou seja, uma energia geradora que antecede, no tempo, os demais orixás. Oxalá pró-cria, abranda, esfria e descansa. Os primeiros conhecimentos acerca deste orixá circunscrevem-se na própria simbologia do branco que, sendo o somatório de todas as cores, traz em si todas as possibilidades de cor. É a energia de onde tudo sai e para onde tudo retorna, por isso o branco é tanto a cor que festeja o nascimento como a que marca o momento da morte. O luto no candomblé é branco pois representa o retorno do indivíduo à massa informe da ancestralidade. Por isso, necessariamente, o primeiro fio que se recebe é o branco de Oxalá, simbolizando o estado de latência que caracteriza o abiã com um candidato à iniciação”[i]
Neste sentido mais geral e abrangente, os fios devem ser a marca inicial de um compromisso do abiã com a casa e seus integrantes. O ritual de lavagem é administrado pela mãe-de-santo ou pai-de-santo, demonstrando a importância desse primeiro vinculo com a religião. A partir deste momento este indivíduo faz parte do axé e vai ficar assim até que haja a determinação de se proceder a iniciação propriamente dita. Esta determinação pode vir tanto do Orixá dono da casa, quanto do próprio Orixá do abiã. Este ritual é tão forte e poderoso que existem casos em que o Orixá da pessoa se contenta com este e não há cobranças em relação a uma iniciação de feitura.
Os compromissos com a casa que o abiã tem são os mesmo que as demais pessoas iniciadas, havendo aqui um enorme diferença em relação aos compromissos rituais e de participação nos mesmos, ficando o abiã provado de maiores participações e de aprendizado. Seus deveres contudo são muito grandes e vão desde a limpeza da casa até a preparação dos espaços onde ocorrerão os rituais fechados. Lavar roupas, cuidar de criações e do quintal do barracão são coisas que os abiãs devem se revezar, estando sempre presentes no Axé, trabalhando e ensaiando danças.
Dentro dos textos aos quais tive oportunidade de ler, sempre percebi de forma subliminar que é neste período que se mostra a característica de participação e os aprendizados em relação às cantigas e danças dos Orixás. Onde há oportunidade de se fazer laços que podem se estreitar numa iniciação, formando o barco de feitura, que irá determinar uma enorme ligação entre seus participantes. Mas este é um assunto muito extenso que deve ser tratado em outros momentos.
Finalizando, percebo que há hoje em dia muita troca de casa por parte das pessoas que não se importam com essas ligações. Ora, se estamos em uma religião que trata de seres míticos e que lida com energias, por que as energias destes rituais estão cada vez mais sendo deixada de lado e perdendo importância? Por que há cada vez mais relatos nas casa de indivíduos que mal se colocam na condição de abiã, se iniciam e logo em seguida não suportam as condições da vida do terreiro, abandonando a casa e até a religião?
Estes fatores associados podem de algum modo explicar estes eventos, infelizmente cada vez mais frequentes, de abandono e descaso com a religião.
Gostaria de receber comentários a respeito deste assunto que tanto nos aflige.
A benção!